Por Eguinaldo Hélio de Souza
Alain Besançon, historiador francês, escreveu: “Se existe, contudo, uma lição da história, entendida no sentido mais positivo, é que a identidade judia, mesmo se não considerarmos mais sua legitimidade de direito, continua, pelas vias mais estranhas, a existir de fato. Nada jamais foi capaz de apagar essa marca, nem mesmo os esforços daqueles que, tendo-a recebido, não a desejavam mais. Queira-se ou não, o gênero humano continua a se dividir em judeus e em gentios”.[1] (grifo do autor).
E essa milenar divisão entre judeus e gentios produziu, ao longo dos tempos, inúmeros conflitos entre a cristandade, tanto em termos práticos quanto em termos teológicos. Desde os seus primórdios até os nossos dias, a Igreja cristã se debate com questões pertinentes ao assunto e está longe de resolvê-las definitivamente. Ainda assim, é necessário um esforço sincero, no sentido de procurar compreender aquilo que envolveu essa relação, tanto no passado quanto nos dias atuais.
O período apostólico e a judaização dos gentios
Não foi fácil,nem na prática nem teologicamente, a inserção dos gentios no contexto da Igreja de Cristo. Essa verdade tende a desaparecer após quase dois mil anos de predominância gentia na aceitação do evangelho. O processo foi lento, conturbado, exigindo dos apóstolo se dos líderes judeus muita reflexão e muitas concessões. E, ainda assim, o caminho foi truculento. As epístolas paulinas e o livro de Atos dos Apóstolos são as primeiras vitrines dessa luta.
Em um primeiro momento, o gentio foi excluído, conforme vemos em Atos 11.1-19. Com o sucesso do ministério paulino entre os gentios, surgiu a questão sobre o que fazer com aqueles que aceitavam a messianidade de Jesus. De início, a resposta óbvia era tornar todos eles judeus. Afinal, não era Jesus um judeu? Não procedia a salvação dos judeus?Não era a nova aliança o cumprimento das predições dos profetas hebreus?
As epístolas paulinas se ocupam, inúmeras vezes, com essa questão, procurando demonstrar que a judaização dos gentios não é necessária. Eclesiologicamente, o assunto foi debatido e resolvido no Concílio de Jerusalém (Atos 15). Naquela ocasião, determinou-se que os gentios que se convertessem a Deus não precisariam tornar-se judeus, mas apenas “se abster da contaminação dos ídolos, da idolatria, do que é sufocado e do sangue” (At 15.20). Foi um fato de importância ímpar na história da Igreja.
Esse ato e as exposições do apóstolo Paulo impediram que a Igreja se tornasse uma mera seita judaica. Embora o caminho fosse longo até que houvesse uma aceitação integral e plena dos gentios, a estrada tinha sido aberta e seria apenas questão de tempo para que os não-judeus se tornassem maioria na Igreja. Todavia, quando isso ocorreu, surgiu o problema inverso.
O período posterior e a gentilização dos judeus
Como já ficar a evidente no livro de Atos, enquanto os judeus se recusavam a aceitara messianidade de Jesus, os gentios a receberam e, por conta disso, havia uma grande tendência de os últimos se tornarem maioria dentro da Igreja. Em poucas décadas, o cristianismo poderia ser descrito como essencialmente uma religião não-judaica. E, com o tempo, mais do que isso, ele se tornaria uma religião antijudaica.
Marcião, um gnóstico anti-semita, pregava que qualquer cristão que utilizasse algum símbolo judaico ou mesmo um nome, ou realizasse qualquer celebração judaica, seria considerado cúmplice da morte de Cristo juntamente com os judeus. As oposições de Tertuliano ao que estava acontecendo na Igreja, pois ele queria que ela não perdesse suas raízes judaicas, foram em vão.
Contudo, talvez uma das expressões mais famosas e negativas sobre os judeus na Igreja pós-apostólica tenha vindo dos lábios de um de seus maiores oradores, João Crisóstomo, bispo de Constantinopla. Eis um trecho de seu sermão antijudaico, proferido quando viu cristãos participando das festas judaicas: “Entre a sinagoga e o teatro, não há diferença. Em ambos se juntavam um bando de homens efeminados e mulheres devassas[...] A sinagoga não é somente uma casa de indecência e um teatro, mas também um covil de ladrões e um lar de bestas selvagens[...] Ainda que ali não existam ídolos, os demônios ali se sentem em casa[...] São os assassinos de Cristo[...] Eles trarão para sua casa o demônio dentro de suas almas[...] Deixe-me chamá-la (a sinagoga) de bordel, casa de vícios, refúgio do demônio, cidade de Satã, corruptora de almas, abismo de corrupção e de todo engano– o que quer que seja feito, será menos do que eles merecem”.[2]
Não é preciso muita dedução para concluir os frutos anti-semitas dessa palavra. Crisóstomo cunhou o termo “deicidas”,isto é,assassinos de Deus. O estigma acompanharia os judeus porto da a Idade Média e serviu para “justificar” o assassinato de comunidades judaicas inteiras.
Veja, a seguir, o juramento que deveria ser feito pelos judeus ao se tornarem cristãos na Igreja Oriental: “Renuncio a todos os costumes, ritos, legalismos, pão ázimo e sacrifícios de cordeiros dos hebreus, e a todas as demais celebrações hebraicas, preces, aspersões, purificações, santificações, jejuns, luas novas, shabats, [...] hinos, cantos [...] abstinência de alimentos e bebidas dos hebreus; numa palavra renuncio a tudo o que é judaico, absolutamente tudo, a todas as leis, ritos e costumes [...] e se mais tarde quiser renegar e voltar à superstição judaica, ou for surpreendido fazendo uma refeição com os judeus, ou celebrando suas festas, ou conversando secretamente e condenando a religião cristã em vez de rejeitá-las abertamente e condenar sua fé vazia, que o tremor de Caim e a lepra de Gehazi se apoderem de mim, assim como os castigos legais a que me reconheço sujeito. E que eu seja um anátema no mundo que há de vir, e que Satanás e os demônios se apoderem de minha alma”.[3]
Isso nos dá uma ideia clara do sentimento do “cristianismo” sobre os judeus. Como uma criança que após crescer destrói seu berço, assim o cristianismo, ao assumir a maior idade, passou a hostilizar toda sua herança judaica. Não era apenas uma questão de não aceitá-la, mas sim de amaldiçoá-la completamente. Agora,em vez de os judeus judaizarem os gentios, os gentios estariam “gentilizando” os judeus.
O posicionamento do reformador Martinho Lutero
Não seria justo condenar toda a obrade Lutero por causa de sua atitude para com os judeus, mas também não seria justo escondê-la. A princípio, Martinho Lutero foi simpático aos judeus, crendo que, ao conhecerem os verdadeiros fundamentos do cristianismo, eles abraçariam a Reforma. Em 1523, seis anos depois do início do movimento, Lutero escreveu um tratado denominado “Jesus nasceu judeu”. Nesse trabalho, ele acusava os papas de terem afastado os judeus do bom caminho. Infelizmente, a recusa dos judeus em se converterem ao cristianismo acabou levando Lutero a publicar, em 1542, o livro“Dos judeus e suas mentiras”, em que os atacava comas seguintes palavras, entre outras: “Seria preciso, para fazer desaparecer essa doutrina de blasfêmia, atear fogo em todas as suas sinagogas e se delas restasse alguma coisa após o incêndio, recobri-las de areia e de lama, a fim de que não se pudesse mais vera menor telha e a menor pedra de seus templos[...] Que se proíbam os judeus entre nós e em nosso solo, sob pena de morte, de louvara Deus, de orar, de ensinar, de cantar”.[4]
Quatrocentos anos depois, o livro seria reeditado por ninguém menos que Adolf Hitler, como um instrumento ideológico contra os judeus. Ainda hoje, a obra de Lutero é o livro de cabeceira dos neonazistas.
O longo caminho de volta
A Reforma Protestante de fato não trouxe uma atitude positiva com relação aos judeus. Todavia, trouxe uma nova atitude com relação às Escrituras Sagradas. Ler e entender a Bíblia não eram monopólio de alguns, mas uma oportunidade para todos. Não tardaria e muitos estudiosos começariam a entender que Deus ainda tinha um propósito para com os judeus.
O inglês Henry Finch (1558-1627), autor do livro A ressurreição do mundo e a convocação dos judeus, defendeu nessa obra uma restauração dos judeus. Para se ter uma noção de seu conteúdo, o rei inglês Jaime I mandou prender Finch por se sentir ofendido pela afirmação constante no livro de que todas as nações do mundo se tornariam,um dia, vassalas danação de Israel.
Em 1611, já havia eruditos que afirmavam o retorno dos judeus à terra de Israel. Em um documento, o cientista Isaac Newton(1642-1727) interpreta as profecias bíblicas que contam sobre o retorno dos judeus à Terra Prometida antes do final do mundo. Segundo Newton, as nações más seriam arruinadas,não haveria mais razões para chorar, todos os problemas seriam resolvidos e ocorreria o retorno dos judeus ao seu próspero reino.
Em 1864, um estudioso das Escrituras, dr. John Cumming, escreveu o seguinte em seu livro O destino das nações: “Como aconteceu que como nação fossem dispersos por todas as terras e não obstante ficassem insulados, separados e sozinhos no meio das nações? As predições da restauração deles são feitas de maneira definida, e ainda estão por se cumprir. Como nação, foram cortados e dispersos e é como nação que serão reunidos e restaurados”.[5]
Em 1866, outro autor, James Grant, escreveria: “A vinda de Cristo empessoa, parar estabelecer o seu reino milenar na terra, não ocorrerá antes que os judeus sejam restaurados à sua terra e os inimigos deles e de Cristo reúnam o cerco de exércitos, de todas as partes do mundo, e comecem o cerco de Jerusalém.”[6]
Essas afirmações indicavam,dentro da Igreja, uma corrente teológica bastante positiva com relação aos judeus. A ideia de uma completa exclusão dos mesmos no plano divino tinha uma contra posição que os colocava no centro.
O surgimento do movimento judaico-messiânico
Embora durante toda a história da Igreja houvesse o que Paulo chamou de “remanescente, segundo a eleição da graça” (Rm 11.5), a atitude positiva para com os judeus começou a dar frutos. Na segunda metade do século XX, principalmente a partir da década de 60, um grupo de judeus convertidos começou a questionar sobre sua posição dentro do cristianismo. Perceberam a diferença entre um judeu e um não-judeu ligando-se a Cristo.
Começaram a pensar: um não-judeu, ao receber o Cristo, está recebendo o Messias, o Ungido, o Esperado pelo povo judeu; enquanto o judeu, por outro lado, está recebendo seu próprio Messias. Além disso, entenderam que a dura condição sempre imposta a eles de abandonar sua judaidade não precisava ser levada a efeito. Não precisariam negar sua identidade para seguir o seu Messias. Isso contribuiria para que um grupo cada vez maior de judeus começasse a se voltar para Jesus. Nunca, em toda a história do cristianismo, com exceção do período apostólico, houve tantos judeus convertidos. Eles voltaram a entender, como na era apostólica, que “Deus é um só, que justifica pela fé a circuncisão e, por meio da fé, a incircuncisão” (Rm 3.30).
Esses grupos,longe de serem judaizantes, podem ser descritos como“desgentilizantes”,pois têm o propósito de dar aos demais judeus a oportunidade de seguir o seu Messias sem que seja necessária a identificação como gentio.
O verdadeiro movimento judaico-messiânico é formado, em primeiro lugar, por verdadeiros judeus e não tem qualquer finalidade de transformar um gentio em um judeu. Entende que sua missão não é transformar, de qualquer forma, a identidade dos gentios, mas sim confirmara identidade do judeu. Acredita que seja possível crer em Jesus como o Messias de Israel sem que, para isso, tenha de negar sua identidade judaica. Conformo declara David Stern, autor do Manifesto judeu messiânico, “o destino do judaísmo messiânico é viver o fato de ser simultaneamente 100% messiânico e 100% judaico, rejeitando o ‘um-ou-outro’ exigido por muitos cristãos e judeus.”[7]
Embora não sejam grande em número,já são cerca de dez mil em Israel e mais dez mil no restante do mundo, quando podem,não se desligam da comunidade judaica,mas continuam trabalhando entre eles, testificando, com suas vidas e palavras (quando surgem oportunidades), o seu encontro pessoal como Messias. Entidades judaicas messiânicas mundiais, tais como: UMJC, Netivyah Institut, Tikkun, MJBI, entre outras,são representantes legítimas do movimento judaico-messiânico.
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[2] KELLER, Werner. Diáspora.Zurich: Pitman Publish Company, 1969, p.100,101.
[3] SOUZA, Eguinaldo Hélio de. Israel: povo escolhido. São Paulo:EditoraVale daBênção, 2009, p.16.
[4] SALEM, Helena. As tribos do mal. São Paulo:Atual. 1995, p.11.
[5] CUMMING, John. O destino das nações. In: LINDSEY, Hal. A agonia do grande Planeta Terra. São Paulo:MundoCristão, 1975, p.35-6.
[6]Ibidem.
[7] STERN, DAVID. Manifesto judeu messiânico.Rio deJaneiro:EdiçõesLouva-a-deus, 1989, p.4.